quarta-feira, 25 de junho de 2008

Ontem foi há dois anos

Estivemos 45 dias na Alemanha. Hoje, olhando para trás, ainda parece que foi ontem. Mas não. Já foi há dois anos. Lá, tinha saudades disto aqui. Aqui, tenho dias em que sinto falta daquilo por lá. Em algumas manhãs consigo ter vontade de fechar os olhos... Consigo respirar a luz fresca dos minutos ao pequeno almoço...


















Em boa parte do tempo acordavamos com isto: o silêncio do jardim do hotel Applebaum. Recordo-o com frequência, talvez não com a frequência devida, pela paz que até mesmo uma única imagem transmite, mas recordo-o volta e meia. Aqui alimentavamos o corpo a seguir a curtas horas de sono. Aqui antecediamos longas e intermináveis - pelo menos pareciam; e eram - horas de trabalho. Entre a escolha do pão, dos queijos, da manteiga, do café, até à fruta e aos iogurtes, se passava em revista boa parte do dia anterior e se começava a viver o presente e o futuro próximo. Umas vezes eram os golos ou as defesas, os falhanços à boca da baliza. Noutras eram os pormenores de uma transmissão ou a promessa de uma boa história para seguir de perto. Poucas coisas nos aborreciam tanto como o apagão de Pauleta e a insistência de Scolari num homem a quem a sorte teimava em voltar as costas.
Terminavamos o pequeno almoço com sorrisos de quem está prestes a fazer, ou já fez, alguma partida a um colega de trabalho. Acabava sempre este momento com um sumo de laranja. Depois "comia" asfalto de um país inteiro. Contava histórias. Corria vidas. E voltava sempre para dormir um sono em excesso de velocidade. Ontem já foi há dois anos. Cada vez mais percebo porquê. Não consigo parar de viver depressa.

Boxeur

[continuação]

Enquanto vai ocupando os armários da kitchnet, mói para dentro que a comida satisfaz o corpo, mas pode estragar o espírito. Fica a matutar naquilo e chega depressa a uma conclusão. A comida estraga qualquer projecto de literatura. Nenhuma frase fica bem com cebolas e alhos pelo meio, nem mesmo para encher chouriços. Tira um bloco azul, muito pequeno, do bolso de trás das calças e anota: “a comida estraga qualquer projecto ou ideia de literatura. Não escrever nunca sobre alimentos”. Acabou a tarefa fechou o armário e foi fumar lá para fora, decidido e sorridente com aquela inesperada preocupação de não engordar os leitores. Quando regressou já era noite. Vinha esbaforido, num passo atrapalhado, a transpirar mais do que a idade permitia. Vinha com pressa de contar à máquina de escrever o final de tarde do primeiro dia. Tropeçou na caixa dos garrafões de água

[continua]

Boxeur

[continuação]

A praia da mais do que provável última morada é o abandono em pessoa. Tem um sítio estreito para dormir ao qual não nos atrevemos a chamar quarto. Nesse espaço cabe meia cama de solteiro, que ele ocupa com uma chaise long, e de tão estreita ser, a parede deu quase a totalidade do corpo a uma janela em forma de porta. A sala é sala e cozinha ao mesmo tempo. Com o avançar dos dias vai ser sala, cozinha e quarto. Lá mais para a frente vai ser tudo. Vai ser o mundo inteiro de um homem, até ele se apercerber que afinal, tudo, pode ser nada.A porta da frente dá para a rua, se quisermos chamar rua a um caminho de terra com marcas de rodado nos limites laterais e erva densa pelo meio. A estrada principal mais próxima fica a 50 minutos a pé bem contados. A porta de trás abre a casa à areia da praia e deixa o mar, recortado, em fundo.Toda a comida dispensa frigorífico. Três postas de bacalhau, o resto de uma garrafa de azeite, uma de vinagre. Um quilo de batatas, quatro cebolas e outros tantos alhos. Sal. Uma lata de feijão vermelho cozido, pacotes de batata frita. Sete garrafas de vinho e duas de whisky. Três broas de milho.

[continua]